Sobre ser uma afronta social
- Shenia Karlsson e Claudina Damasceno Ozório
- 20 de dez. de 2017
- 6 min de leitura
Quando executamos algo, aquilo tende a crescer e a se desenvolver. Ao mesmo tempo isso desperta um misto de emoções em nós, mas também nos outros. No texto “não se incomode se você incomoda”, expusemos um pouco sobre alguns incômodos causados pela presença dos negros nos diversos espaços. Ocupar espaço está além de cotas e oportunidades, envolve também disponibilidade interna para lidar com as situações que virão a partir dessa ocupação. Nesse ponto, podemos refletir sobre os sentimentos e emoções inerentes ao contato com o outro, especialmente com o “legado psíquico” de cada um. Quando ocupamos os espaços e mostramos a nossa capacidade de execução, colocamos em cheque a capacidade de execução do outro, obrigando-o a sair da sua zona de conforto. Porém, existe um sistema instaurado que busca manter a homeostase. Esse sistema fará forças para manter o status quo. Assim, quando há opressão, desrespeito e desqualificação das diversas formas de expressão do nosso trabalho é o sistema, buscando a manutenção do funcionamento do que já está instaurado.
A partir disso, convidamos você, caro leitor, a ampliar o pensamento. Imagine aquela situação em que você ultrapassou a linha que o limita e vai além do que esperam de você e constrói um legado, uma nova ideia que foi posta em prática e aquilo vira ‘sucesso’. Você rompeu paradigmas, surpreendeu e foi além. As limitações sociais e intelectuais ficaram pequenas e você percebe que tem o poder da escolha e que, na verdade, nem todos conseguem fazer escolhas. Agora, imagina se você ultrapassou todas essas barreiras sendo preto. Nesse caso, tem o atravessamento racial e se você é preta, tem ainda o atravessamento de gênero. Dessa forma, você mudou o seu sistema de crenças enraizadas socialmente e culturalmente e criou possibilidades. Porém, tudo que mudou em você e para você, mudou também para o seu entorno. Lembra do sistema? Isso tudo é muito óbvio. Claro, não estamos escrevendo nenhuma novidade, mas quando ampliamos o pensamento, percebemos como as relações de poder tornam-se frágeis quando você não se submete. E você deve estar se perguntando, como não me submeter se isso é maior do que eu?
Ao longo da nossa jornada, podemos perceber que à medida que ultrapassamos as linhas que nos limitam, podemos estar entrando no território do outro, tirando-o de sua zona de conforto. Desse modo, os sentimentos e emoções que nos invadem, também invadem o outro. Tudo é novo, para nós e para o outro, assim a incógnita é recíproca. O desconforto ocasionado pelas diversas situações é compartilhado, ainda que não dito. Precisamos aprender a nos sentir, a nos ouvir e a fazer o mesmo com o outro e com o ambiente. Com o tempo, percebemos que a nossa capacidade de execução coloca em cheque a capacidade de execução do outro. E é aí que entram as armadilhas emocionais.
Vamos lá, vamos explicar: se vivemos em uma sociedade competitiva e hierárquica, o machismo e o racismo servem muito bem como formas de corte de competidores. Se apesar disso, nós negros, conseguimos ter ideias e executá-las, colocamos em cheque muitas construções e “verdades” sociais. Quando percebemos o nosso potencial e executamos nossas ideias, desmascaramos, ainda que em parte, esse sistema bem articulado que nos enfiaram “goela baixo”. E, a supremacia de uns em detrimentos de outros fica ameaçada. Dessa forma, a presença de pessoas de cor em determinados espaços pode significar acirramento da competição e o que era, até então, óbvio se torna passível de questionamentos. A competição aumenta, já que aumentou o número de competidores, suas capacidades e condições. Assim, para manter as relações de poder, sem mudanças, o sistema (formado por pessoas) precisará usar formas “bem boladas” de sabotagem. Esses comportamentos também são reveladores de sentimentos como medo (ameaça) e inveja, não do que você tem, mas do que você é capaz de executar. Então, se seu Professor solta aquelas frases que tocam a inferioridade dos negros, disseminada pela história, ciência e tecnologia, ele está usando um soft power para manter o status quo. De acordo com Machado & Loras (2017), soft power é o “poder de influenciar as pessoas por meios culturais, religiosos e ideológicos” (p.15). Assim, ao reproduzir frases utilizadas ao longo da história para comprovar a inferioridade de um povo em relação ao outro, o seu professor, colega, conhecido ou quem seja, está proliferando uma ideologia, servindo como instrumento para a manutenção do sistema. Nesse caso, “pensar” pode ser um bom instrumento para desconstruir crenças negativas.
Além disso, lidar com o estranho, que pensa diferente e sobre outra lógica pode causar transtornos e gasto de energia, especialmente para quem não quer mudanças. Talvez, mudar a forma de pensar e agir cause desconforto e insegurança, mas por outro lado pode proporcionar crescimento também. Esse cenário é propicio para a emergência de sentimentos e emoções, por vezes ambivalentes, que teremos que lidar. Sob essa perspectiva, o desconforto é positivo, pois pode fazer pensar, construir e provocar
mudanças. Solomon (2015) argumenta que “temos de aprender como reconhecer nossas emoções, como lidar com elas, como usá-las, e isso é um conjunto de habilidades que a maioria de nós reuniu apenas acidentalmente, sem pensar e de forma inadequada” (p. 24). Sendo assim, as emoções são inerentes a qualquer ser humano, sem distinção de raça, classe ou gênero. Obviamente temos a subjetividade e a história de vida de cada um, que se deve levar em consideração, mas quando aprendemos a identificar nossos sentimentos e emoções, tendemos a responder de forma mais adequada aos estímulos do ambiente. E pode ser que aí esteja a nossa força.
Quando nos cuidamos, executamos algo e melhoramos a nossa prática, tendemos a ocupar espaços que muitos desejam ocupar, mas por algum motivo não conseguiram. Nesse momento, causamos no outro desconforto emocional e a tendência é a criação de estratégias para nos jogar para fora do sistema - manutenção do status quo, lembra? - Uma pessoa de cor, em espaços sociais de poder, tende a mudar a lógica do lugar. Os códigos e esquemas instaurados podem ser questionados e talvez seja aí que está o desconforto. Repensar a prática e ver o objeto de estudo como sujeito da fala e pensante pode fazer emergir muitos sentimentos, como insegurança e medo. As retaliações virão como forma de proteção e manutenção do modo de funcionamento anterior.
De uma forma bem despretensiosa ou talvez simplória, ser negro (a) e ocupar espaços, antes inteiramente de brancos, coloca em cheque o sistema de privilégios e a meritocracia. Assim, fazemos um convite: Se imagine como uma peça da engrenagem que interfere no sistema social de manutenção do genocídio do povo negro. Se entenda nesse espaço e construa disponibilidade interna para “hackeá-lo”, modifica-lo e desconstrui-lo para reconstruí-lo de uma forma mais justa e menos desigual. Lembre-se: você pode ser uma afronta social, pois a sua presença coloca em cheque as “verdades” historicamente disseminadas sobre o povo negro. Sendo assim, a presença de um negro nos lugares, nunca é só de um negro. Ubuntu!
Claudina Damasceno Ozório é Psicóloga Clínica. Atende em consultório particular. É uma das idealizadoras do Projeto PapoPreta. Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio. Pós-graduanda em gênero, sexualidade e direitos humanos da FIOCRUZ. Cursando Psicologia e Relações Raciais no Instituto AMMA Psique e Negritude de São Paulo. Membro do grupo de pesquisa “Corporalidade” (sendo uma das temáticas o estudo da representatividade social e cabelo étnico) no Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Participou do grupo de pesquisa em “Família e Casal na contemporaneidade” no Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Psicóloga no projeto social Psicologia & Vida – Tijuca. Foi Psicóloga na ONG Rede Postinho de Saúde Preventiva da Mulher na comunidade do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho. Membro do grupo "Psicólogos do Bem" da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas). Foi acadêmico-bolsista em Saúde Mental da Prefeitura Municipal do Rio de janeiro no CAPS Rubens Correa de Irajá/ RJ. Trabalhou como Terapeuta de Família, Casal e grupos no Setor de Dependência Química e Comportamental na Santa Casa de Misericórdia/ RJ. Foi Terapeuta Externo na Clínica Espaço Clif – Botafogo. cdozorio@gmail.com / claudina.ozorio@fiocruz.br
Shenia Karlsson é Psicóloga Clínica, Pós Graduada pela Puc-Rio, Terapeuta Sistêmica de Família, Terapeuta de casal, Terapia de casais homoafetivos, Psicóloga Social e de grupos, Foi Psicóloga na ONG Rede Postinho de Saúde Preventiva da Mulher. Trabalhou como Psicóloga na Casa Francisco de Assis, atendendo famílias da creche social Santa Clara. Membro participante do Laboratório de Experiências Feministas Negras: Das vidas às Teorias na Ong Casa das Pretas. Psicóloga e Pesquisadora na Prefeitura do Rio de Janeiro - Colônia Juliano Moreira no programa de Moradias Terapêuticas. criskarlsson@gmail.com
Referências:
Solomon, R. C. (2015). Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. Tradução: Miriam Raja Gabaglia de Pontes Medeiros.
Machado, Carlos Eduardo Dias & Loras, Alexandra Baldeh (2017). Ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. São Paulo: DBA, Artes Gráficas.

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