Como silenciar uma mulher preta? Sobre um racismo metamorfoseante
- Claudina Damasceno Ozório e Shenia Karlsson
- 12 de set. de 2018
- 5 min de leitura
Nós do Papo Preta nos sentimos impelidas a reforçar a voz da Dra. Valéria dos Santos e com isso ficamos refletindo sobre as novas formas de silenciamento, que atualizam as práticas racistas presentes em nosso cotidiano. Desde formas mais sutis, tal como dizer que “mulher negra é raivosa ao falar”, às mais agressivas, como aconteceu no caso da advogada, algemada e impedida de exercer o seu ofício. O episódio ocorreu no terceiro juizado especial criminal em Duque de Caxias: A Dra. Valéria dos Santos, “ilegalmente”, teve a apreciação de sua cliente negada por uma juíza “leiga” e logo em seguida foi expulsa da sala de audiência, arrastada e agredida por policiais. Ela foi interditada, violada nos seus direitos e silenciada. SILENCIADA!
Acreditamos que o fato de apenas 10,4% das mulheres negras ingressarem no ensino superior em relação a 23,5% de mulheres brancas (IBGE 2016) parece refletir ainda lógicas opressoras, racistas e coloniais no mercado de trabalho. Seríamos nós, mulheres negras, ainda vistas como força de trabalho e não capazes de exercer atividades intelectuais e de ocupar lugares de poder? Quando transitamos nesses lugares, seremos sempre interditadas ou extirpadas? Não sabemos!
Embora a entrada na Universidade não garanta a entrada no mercado de trabalho, podemos deduzir que o número de mulheres negras no mercado de trabalho formal tenha aumentado, mas acreditamos ser ainda menor do que o número de pretas com nível universitário. Entretanto, nossa breve discussão seguirá outro caminho, aqui pretendemos chamar a atenção para as atualizações que sofrem as formas de silenciamento que nos são impostas.
O racismo além de perverso é criativo, mostra novas facetas e pratica suas crueldades, seus arbítrios por aqueles que são “pagos” para nos proteger, o representantes do Estado. Os últimos episódios que envolvem um dos nossos poderes (não tão estimado, diga-se de passagem), o sistema Judiciário, atesta a problemática do racismo sistêmico de todo seu organismo.
Bem sabemos que a população carcerária é composta em torno de 64% de homens negros (jovens que são enjaulados em sua maioria por crimes menores, como roubo e furto cumprindo penas entre 4 a 8 anos de prisão - IBGE, 2107), além disso, o Brasil também é o país que mais prende mulher negra, compondo a quarta população carcerária feminina no mundo (Infonpen, 2018). Dessa vez, a lógica racista ousou submeter uma vítima um tanto inusitada, a Dra. Valéria dos Santos, advogada criminal. Será que se fosse ela branca o tratamento seria o mesmo? Será que seria interditada durante o exercício de sua profissão?
A Psicóloga, escritora, artista, portuguesa residente em Berlim e professora da Universidade Humboldt, Grada Kilomba, em seu trabalho “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, utiliza “a máscara”, conhecida por nós como mordaça, para levantar sua reflexão. Símbolo concreto do total silenciamento sancionado aos escravos, a máscara foi um objeto que integrou o colonialismo e suas formas de violência com um objetivo principal, provocar medo. A imagem perpetuada por nós, a escrava Anastácia, símbolo de resistência na luta contra a escravidão é a principal referência. Na verdade, a mordaça ou máscara nos parece uma forma de representação-coisa da palavra silenciamento. Ela resgata essa prática explorando algumas indagações:
“Quem pode falar? Quem não pode? E acima de tudo, sobre o que
podemos falar? Por que a boca do sujeito negro tem que ser calada?
Por que ela, ele ou eles ou elas têm de ser silenciados? O que o sujeito negro poderia dizer se sua boca não estivesse tampada? E o que é
que o sujeito branco teria que ouvir? "
A intelectual ressalta que a voz do negro contém algo ameaçador, a verdade. O perigo está nas contestações, as verdades que não podem ser reveladas, pois o racismo, o colonialismo, a escravidão, as injustiças, as desumanidades são segredos do branco, e estes costumam protegê-los a todo custo. Grada Kilomba ainda articula o silenciamento com um conceito psicanalítco, a repressão (recalque). De acordo com Freud (1923, p.17) a repressão (recalque) “consiste em afastar algo e mantê-lo a distância do consciente”. Há certos conteúdos que não podem ser revelados e mantêm-se latentes no inconsciente, e nele resiste, partilha, mantém “fingindo” que nada existe. Outro aspecto interessante na análise da autora é o caráter simbólico contido na boca, ela diz que a boca “é um órgão de enunciação, da fala, enuncia certas verdades desagradáveis e precisa ser confinada”. Em sociedades estruturadas pelo racismo a voz do negro é incompatível com o sistema, por isso os silencimentos tornam-se necessários.
Se há vítima, então tem algoz e olhar para as atrocidades provocadas pelo racismo é reconhecer vítimas e consequentemente algozes. Cabe a cada um colocar cada sujeito, com sua cor, raça e alegorias em seu lugar. No caso da Dra. Valéria dos Santos, ao delatar as verdades que deveriam ser ditas revelava a incompetência, a arbitrariedade e a ilegalidade da autoridade então presente, então foi silenciada por outro dispositivo, a contenção do Estado, representado pela figura dos policiais. Ao exercer seu trabalho, ela também foi vítima de injustiça por quem deveria fazer justiça. Talvez, devemos pensar no incômodo que causamos ao tentar fazer valer os conhecimentos apreendidos, pois delatamos a falta de conhecimento dos soberanos, colocando em cheque a pseudo-supremacia, criada pelo discurso hegemônico.
Aqui está o ponto chave de nossa breve discussão. As novas formas de silenciamento, cada vez mais sofisticadas e cruéis, estão em pleno funcionamento, provocando prejuízos à nossa saúde psíquica, ferindo a nossa dignidade humana, especialmente das mulheres e dos homens negros dessa sociedade. O problema, a nosso ver, parece estar em nossa existência, enquanto sujeitos negros, pois parece não importar muito se somos doutores ou não, se temos conhecimento ou não, continuaremos sendo pretos, e é aí que está o corpo a ser silenciado.

Desse modo, nós (enquanto mulheres negras e Psicólogas) seguimos na luta contra as atitudes racistas e as suas formas de silenciamento, trabalhando para que um dia possamos ecoar nossas vozes de forma mais equânime. O racismo está presente na estrutura social, no comportamento das pessoas e se atualiza, adoecendo a todos e de todas as formas, metamorfoseando-se nas ações cotidianas. Isso precisa parar!
Claudina Damasceno Ozório
Psicóloga Clínica, Palestrante e Idealizadora do Papo Preta: Saúde e bem estar da mulher negra, Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio, Pós Graduanda em Psicanálise pela Puc-Rio, Especialista em gênero, sexualidade e direitos humanos da FIOCRUZ, Possui formação em Psicologia e Relações raciais no Instituto AMMA Psique e Negritude de São Paulo, Membro do grupo de pesquisa “Corporalidade” (sendo uma das temáticas o estudo da representatividade social do cabelo étnico) no Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, Membro do grupo "Psicólogos do Bem" da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas).
Shenia Karlsson
Psicóloga Clínica, Palestrante e Idealizadora do Papo Preta: Saúde e bem estar da mulher negra, Diretora do Departamento de Sororidade e Entreajuda do INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Lisboa, Terapeuta Sistêmica de Família, Mestranda em Estudos Africanos no Instituto de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Lisboa, Terapeuta de casal, Terapia de casais homoafetivos, Psicóloga Social e de grupos, Psicoterapia focada em questões étnico raciais e de gênero, Ex membro participante do Laboratório de Experiências Feministas Negras: Ong Casa das Pretas, Terapeuta de EMDR licenciada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove Press, 1967.
FREUD, Sigmund. The Ego and the Id and Other Works. Volume XIX. London:
Vintage Books, 1923.
GILROY, Paul. Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro:
34/Universidade Cândido Mendes, 2002.
HALL, Stuart.: “The After-Life of Frantz Fanon: Why Fanon? Why Now? Why
Black Skin, White Masks?”. In: Alan Read (Ed.) The Fact of Blackness. Frantz
Fanon and Visual Representation. London: Bay Press, 1996, p. 12-37.
KILOMBA, Grada. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010.
LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand. The Language of
Psychoanalysis. London: Polistar Wheatons Ltd, 1988.
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