A mestra e a obra: as origens que ameaçam
- Shenia Karlsson e Claudina Damasceno Ozório
- 20 de dez. de 2017
- 6 min de leitura
Black face é um conceito que surgiu no contexto americano. Dispensa explicações, afinal, muitas certezas tem sido tecidas baseadas nesse conceito. Black face ou não, observando o último episódio, nos deparamos sobre algo que nos chamou muita atenção, a legitimidade de quem discursa, mais conhecido democraticamente, entre os negros, como “o lugar de fala”. Estamos acompanhando o que consideramos “chicoteameto” virtual da Alexandra Loras – ex-consulesa francesa. Nosso objetivo aqui não é discutir a arte, mas trazer a nossa percepção enquanto Psicólogas, pesquisadoras de questões étnico-raciais e estudiosas do comportamento humano. Direta ou indiretamente o tema da arte faz emergir a questão do racismo. Independentemente da percepção de cada um sobre o trabalho da artista, pois a arte é universal, tem como componente principal despertar diferentes olhares e reações, e sempre está nos olhos de quem a interpreta, mas o cerne da questão é o racismo. E daqui, começamos nossas indagações. Os comentários direcionados a autora da obra nos parece a expressão da fragilidade de nosso povo em usar a sororidade, talvez dificuldade em se validar e, talvez ainda, em se ver em posição de destaque. O jogo é perverso e precisamos aprender a jogá-lo.
Vivemos em uma sociedade que se estruturou a partir de um “pacto narcísico” entre os brancos. Trata-se de um acordo inconsciente entre os brancos que tem por finalidade a manutenção dos lugares sociais e dos privilégios extraídos nas sociedades racistas. Isso porque esses “lugares” foram naturalizados e não eram questionados. Um pacto de proteção, silenciamento e medo. Embora uma expressão do inconsciente, este pacto corporifica-se nas transações sociais formando uma rede poderosa de proteção, o branco, independente de sua postura, do seu saber, de suas produções, de suas falhas ou ineficiências, é protegido pela rede. A miscigenação é um exemplo desse pacto, mas esse é um tema pra outro momento. O silenciamento acontece especialmente quando o tema é o racismo, disso não se fala, afinal vivemos a democracia racial. Mas, como bem dito pela estudiosa Maria Aparecida Silva Bento “o silêncio não pode apagar o passado: esse tema é um permanente desconforto para os brasileiros e emerge quando menos se espera” (p.45). Se a proposta da Loras foi questionar os lugares de poder sem negros, acabou trazendo uma discussão oposta. O que nos pareceu uma tentativa (inconsciente?) de silenciamento. Nós negros, muitas vezes, em nossas discussões podemos estar reproduzindo, inconscientemente, vivências e construções históricas apreendidas (tanto criticadas) e no entanto, caindo na armadilha clássica de validar o lugar do fracasso e da falta ao invés de validar o lugar do sucesso e prosperidade. Como citado por Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas: “avançamos num corpo a corpo com a própria negrura ou com a própria brancura, em pleno drama narcisista, cada um enclausurado na sua particularidade, embora, de tempos em tempos, com alguns vislumbres, ameaçados contudo pelas origens" (p. 64). Afinal, o lugar da prosperidade é para nós?
Talvez a nossa dificuldade (inconsciente) de nos ver representados em posição de destaque, seja parte do “acordo tácito” que nos foi transmitido ao longo das gerações. Podemos questionar a obra e devemos, mas atacar o sujeito negro, que está em lugar de destaque, diz muito sobre nós, nossas crenças sobre nós e nossos acordos inconscientes. Somos parte da engrenagem desse sistema e devemos conhecer o nosso papel na manutenção do status quo. O pacto narcísico dos brancos é tão bem estabelecido, que transborda para o nosso ideal de ego e acabamos por ter dificuldade de nos ver em outros sujeitos não brancos. Se a arte foi um erro ou não, é um julgamento que não nos cabe. Atacar o sujeito pela sua obra é raso demais, pessoal demais e desrespeitoso demais. Precisamos olhar para isso de uma forma mais ampla e é complexo. Nossos comportamentos em relação ao outro dizem muito sobre as nossas projeções e talvez dificuldade mais profundas. Parece que hoje para se falar de negritude é necessário o lugar de fala, ou seja, é preciso ser negro. E achamos justo, afinal nossas narrativas e vozes foram silenciadas por tempo demais. Mas, que tipo de negro é você? Brasileiro, Francês, Africano? Qual é a nossa legitimidade? Essa breve análise despretensiosa está baseada numa fala dirigida a Alexandra Loras: “você nem é brasileira, não sabe como é ser negra brasileira”. Em nossas experiências pelo mundo, observamos que “negro” tem endereço, e não nacionalidade.
A afrodescendência antecede a legalidade da nacionalidade, provando que a experiência social é marcante e norteia a classificação do indivíduo. Inclusive é necessário mais estudos nos campos especialmente da Psicologia para dar conta desse fenômeno tão presente, o da identidade negra no meio social, no que se refere à nacionalidade. Nem uma coisa nem outra, nem Africano nem Europeu. Debruçando sobre esse impasse e pesquisando o “indivíduo entre” em contexto Europeu como tema de Mestrado em Estudos Africanos, pudemos perceber que o negro é Afrodescendente, nunca Europeu, especialmente em Portugal. Como o racismo se manifesta no discurso e nas transações sociais, a legalidade muitas vezes não se cumpre no âmbito social. Quem nós somos realmente? Porém, qual é a verdadeira intenção das nossas indagações? Como Psicólogas e pesquisadoras, acreditamos que precisamos ir além da superficialidade da discussão e lançar reflexões mais profundas. Observar e discutir fenômenos que silenciosamente permeiam os nossos comentários, sem nos darmos conta. Contudo, a pergunta é, qual é o “Pacto Narcísico” do negro? Ele existe? Como estamos construindo os nossos pactos narcísicos? Como rede de proteção, destruição, sobrevivência? Temos espaço para acolher o sucesso? O erro? O erro cabe no sucesso? Os movimentos clamam a urgência de ocupar lugares antes não ocupados, pela emancipação do negro na sociedade brasileira, por igualdades de direitos, bem, são inúmeras demandas justas e necessárias. Porém, como estamos lidando com o conflito Emancipação X Naturalização dos lugares sociais? E a emancipação do outro “negro” como possibilidade real, até que ponto validamos? Como galgar lugares na impossibilidade existencial em ocupá-los? Vale a pena lembrar que os mecanismos de projeção são latentes e o outro é visto a partir de nossas construções e vivências individuais, insuficientes e limitantes, porque o Outro é o Outro. Entre erros e acertos, a caminhada é longa, árdua e complexa, contudo é uma caminhada que deve ser feita em grupo, de semelhantes e não de iguais. Acreditamos que precisamos nos esforçar para a criação de nosso “pacto narcísico”, um lugar onde os negros realmente podem ser acolhidos em vez de atacados, serem compreendidos em vez de expelidos. Uma rede poderosa de proteção, um espaço para erros e acertos, um lugar de apoio sem julgamentos rasos. Precisamos da construção de um espaço que propicie a resiliência coletiva para as pessoas de cor. Isso é emergencial. É urgente!
Shenia Karlsson é Psicóloga Clínica, Palestrante, Mestranda em Estudos Africanos no Instituto de Ciências Políticas e Sociais de Lisboa – ISCSP - Portugal. Pós Graduada pela Puc-Rio. Terapeuta Sistêmica de Família e casal, Psicóloga Social e de grupos. Trabalhou como Psicóloga na Casa Francisco de Assis, atendendo famílias da creche social Santa Clara. Membro participante do Laboratório de Experiências Feministas Negras: Das vidas às Teorias na Ong Casa das Pretas. Foi Psicóloga e Pesquisadora na Colônia Juliano Moreira no programa de Moradias Terapêuticas. criskarlsson@gmail.com
Claudina Damasceno Ozório é Psicóloga Clínica. Palestrante. Atende em consultório particular. É uma das idealizadoras do Projeto PapoPreta: Saúde e bem estar da mulher negra. Mestre em Psicologia Clínica pela Puc-Rio. Especialista em gênero, sexualidade e direitos humanos da FioCruz. Diretora Administrativa da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas). Cursou Psicologia e Relações Raciais no Instituto AMMA Psique e Negritude de São Paulo. Membro do grupo de pesquisa “Corporalidade” (sendo uma das temáticas o estudo da representatividade social e cabelo étnico) no Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Participou do grupo de pesquisa em “Família e Casal na contemporaneidade” no Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Trabalhou como Terapeuta de Família, Casal e grupos no Setor de Dependência Química e Comportamental na Santa Casa de Misericórdia/ RJ - cdozorio@gmail.com / claudina.ozorio@fiocruz.br
Referências Bento,Maria Aparecida Silva; Carone, Iray (2016). Psicologia Social do Racismo - Estudos Sobre Branquitude e Branqueamento no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes.
Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Editora da Universidade Federal da Bahia.
Lia Vainer Schucman, Sylvia da Silveira Nunes Eliane Silvia Costa (2015). A Psicologia da Universidade de São Paulo e as relações raciais: perspectivas emergentes.
Lia Vainer Schucman(2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana.
Maria Aparecida Silva Bento (2002). Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público.

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