Psicologia e mulheres negras: o nosso lugar e o imaginário social
- Davis, Angela (1944). Mulheres
- 20 de dez. de 2017
- 6 min de leitura
Caro leitor, o presente texto propõe uma reflexão sobre lugar da mulher negra no imaginário social, a partir de situações reais que nos tem acontecido, enquanto idealizadoras do projeto PapoPreta. No entanto, gostaríamos de contar um pouco sobre o nascimento desse projeto e dos motivos para a sua construção
O projeto PapoPreta nasce da necessidade de dialogar com o universo da mulher negra e suas peculiaridades. Ao longo da nossa trajetória como Psicólogas e pesquisadoras, reconhecemos o lugar social a nós reservado, enquanto mulher e negra, sentindo como foi negativo para a nossa saúde mental, especialmente a autoestima. A partir da nossa vivência enquanto mulher e negra, percebemos que ainda temos pouca representatividade em determinados lugares sociais, somos poucas ocupando determinados cargos e ainda somos associadas ao lado negativo das relações, como corpos desprovidos de afeto.
Em nosso exercício da Psicologia Clínica e Social ao longo dos anos, constatamos a carência de uma intervenção Psicoterapêutica que atendesse demandas específicas das mulheres negras, especialmente em comunidades do Rio de Janeiro, considerando que a maior parte do público é composta por mulheres negras. Assim, desenvolvemos um trabalho baseado em representatividade como Psicólogas e negras, sentindo que contribuía de forma significativa, utilizando uma escuta apurada sobre experiências que só atravessam a mulher negra, podendo assim desenvolver formas de enfrentamento construídas especificamente para esse público. A aderência por parte das pacientes ao trabalho obteve resultados surpreendentes, provando que a identidade racial e a representatividade é fundamental na construção do bem estar e da saúde mental da mulher negra. Assim, ficamos ainda mais motivadas em ser parte da mudança de paradigma, buscando modos de romper com lógicas opressoras, idealizando o Papo Preta.
Nesse contexto de aprendizagem entre vivência, trabalho como psicoterapeutas e estudos sobre psicologia e relações raciais, construímos o PapoPreta. Mas, essa semana um acontecimento nos surpreendeu e nos trouxe uma reflexão sobre o nosso lugar no imaginário social. De uma forma bem significativa, um misto de sentimentos nos invadiu, trazendo-nos vários questionamentos sobre a percepção social da nossa identidade, o lugar dos negros e das negras na sociedade, sobre a nossa profissão, a aceitação social do nosso lugar de sujeito suposto saber e até mesmo a nossa própria aceitação. Faremos aqui, de forma bem simplória, uma análise do conteúdo do post. Para tanto, fragmentamos o conteúdo por uma questão puramente didática.
A situação foi a seguinte: Um colega de profissão colocou um post em nossa página oferecendo os seus serviços. Após se apresentar, ele escreveu o seguinte:
“(...) gostaria de dizer que atenderei homens e mulheres negros a valores abaixo dos da clínica social como forma de contribuição para o projeto (...).
Enviamos um print para amigos historiadores, pesquisadores e sociólogos e eles questionaram a associação negro-pobre, a questão ética e expuseram o estranhamento. Essa parte do post remeteu-nos aos estudos de Angela Davis sobre mulheres, raça e classe. A autora discorre sobre o lugar dos negros na sociedade, em que raça e classe se entrelaçam e o lugar social associado às pessoas negras é na base da pirâmide. Logo, a cor da pele era diretamente relacionada à condição socioeconômica.
Embora seus estudos tenham sido realizados nos EUA, na década de 40, parece que ainda nos dias atuais (2017) essa associação também é feita no Brasil, o país da democracia racial. Já existem alguns estudos apontando que os negros consomem cerca de 1,5 trilhões de reais por ano (Locomotiva Instituo de Pesquisa). Obviamente, que estamos falando de negros que se emanciparam economicamente ou estão no processo, levando em consideração que a população que se encontra abaixo da linha da pobreza é composta, em sua maioria, por negros (Relatório da ONU, 2017). Porém, relacionar diretamente pobreza, necessidade e assistencialismo a negros é no mínimo preconceituoso e determinista. Como bem disse Emicida “estamos em reforma”, e acredite, precisamos aceita-la e entendê-la para nos comportarmos de forma adequada diante dos negros e da nova ordem social e simbólica que há algum tempo se instaura.
Dessa forma, faremos um paralelo com a fala da Filósofa Djamila Ribeiro. Porém, pedimos, a você caro leitor, que troque a palavra “racismo” por “pré-conceito”, pois acreditamos que o objetivo do post da nossa colega de profissão não teve cunho racista.

incomodou a supremacia de uns (colonizador) em detrimento de outros (colonizados), o que mantém a desigualdade das relações no sistema social. O que nem sempre nos damos conta. Para tanto, é preciso ter esse tipo de crítica para atender a população negra, que se encontra cada dia mais empoderada intelectualmente, socialmente e economicamente. Apresentamos o PapoPreta como um espaço para romper com lógicas opressoras. Estamos em um espaço físico (em Copacabana) extremamente significativo e relevante. Propomos uma forma real de ocupação de espaços que nos foram roubados ao sermos associados diretamente à pobreza ou à falta de riqueza. É um espaço de produção do conhecimento e descolonização do saber. Um lugar de empoderamento econômico, psicológico e de mudança da estrutura social, um lugar de micropolítica. Dessa forma, em momento algum autorizamos a colega a publicar seu post em nossa página. Além disso, somente indicaríamos profissionais que tivessem essa consciência social e real desejo por mudança da estrutura social, mudando seu próprio comportamento.
Essa parte do post nos remeteu também à polêmica série do Netflix “Dear, White people” que busca clarificar as relações de poder envolvida nas relações raciais. A união e fortalecimento dos jovens negros fez com que modificasse a lógica da instituição, trazendo questionamentos sobre o tratamento entre as diferentes raças. Dessa forma, pensamos como o fortalecimento entre os negros e as criações voltadas para essa população tende a ser sabotada ou talvez ameace quem pouco entende sobre o assunto. Outro pensamento que nos veio foi o de questionamento implícito do nosso lugar de suposto saber (os bons entendedores entenderão). Talvez, com o PapoPreta possamos despertar no grupo que não faz parte do público-alvo o sentimento de exclusão e não pertencimento. Prestamos aqui a nossa solidariedade, já que é assim que, a maioria de nós, mulheres negras, nos sentimos na maioria do tempo e em muitos espaços (excluídas e não pertencentes). Talvez, desperte em outros o desejo de ajudar em sua óbvia capacidade intelectual, pessoal e profissional modelo, autorizadas socialmente.
A colega de profissão termina seu post da seguinte forma:
“(...) Minha mãe de criação era negra e foi uma das pessoas de quem mais me orgulhei nessa vida, ela foi responsável pela mulher que sou hoje”.
Repetimos novamente, talvez a intenção da colega de profissão tenha sido apenas ajudar. Porém, esse discurso nos remeteu ao tom afetuoso que estamos ‘calejadas’ a ouvir, reproduções opressoras que mantem a lógica da estrutura social. Analisando pela perspectiva de mercado, afinal vivemos em uma sociedade competitiva e hierárquica, acreditamos que os negros sejam visibilizados pela via do consumo (um nicho potente), que por vezes é unilateral, pois criamos, construímos e trabalhamos para o enriquecimento ou visibilidade de alguém, geralmente sujeitos não negros. Talvez, a referência da colega seja essa, o lugar de sua pseudo-mãe, que nos remete à reflexão de Djamila Ribeiro acima, sobre querer ser parte da mudança, mas ao mesmo tempo manter o sistema hierárquico e por vezes, assistencialista. Emancipar a pessoa negra é autorizá-la a existir, do jeito que ela é, sabendo que pode consumir o que quiser, ir aonde quiser, ter acesso aos melhores cuidados e que será compreendida e validada por isso. Sim, isso é poder de escolha, que dizem (com os comportamentos e não com o discurso) que pessoas de cor não possuem.
Entendemos com essa atitude que nosso lugar de suposto saber poderá ser questionado a todo tempo, seja por quem for, ainda que de forma implícita. Isso é comum a todo e qualquer profissional, especialmente aos que tem ‘defeito de cor’. Essa situação serviu para refletirmos um pouco sobre o lugar do negro no imaginário social. Fora o caráter invasivo e desrespeitoso com o qual nos sentimos tratadas, percebemos que esses sentimentos são comuns em diversas situações. Entendemos que qualquer pessoa, de qualquer etnia, poderia sentir o mesmo que nós, além da invisibilidade. Porém, o conhecimento histórico e cultural da nossa sociedade não nos permite sermos tão simplistas e isso não pode ser mais assim, pois já não cabe mais em nossos dias. A naturalização desse tipo de situação entendida como “ela só quis ajudar” é muito reducionista, já estamos mais complexos e sofisticados. Acreditamos que a raça humana já tenha evoluído um pouco mais. Porém, comportamentos são passíveis de mudança.
Assim, propomos uma reflexão, caro leitor, assim como o foi para nós. Alguns questionamentos pairaram sobre as nossas mentes: Em qual lugar você acha que as pessoas negras estão? Quando você vê trabalhos direcionados a pessoas negras, qual primeiro pensamento vem em sua mente? Nosso lugar de suposto saber combina com o tom da nossa pele? Ou parece que algo está fora do lugar? Que autorização damos para nos ‘consertar’?
Psicólogas Claudina Damasceno Ozório e Shenia Karlsson. Idealizadoras do Papo Preta
Referências
http://woomagazine.com.br/dear-white-people-e-vozes-negras/
https://pt.slideshare.net/ILocomotiva/pesquisa-locomotiva-valor-completa
http://www.geledes.org.br/por-que-o-ativismo-das-mulheres-negras-incomoda-tanto/
https://daslutas.wordpress.com/2014/09/18/ciencia-tecnologia-e-inovacao-africana-e-afrodescendente/
Davis, Angela (1944). Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
Bell hooks (1981). Não sou eu uma mulher. Mulheres negras e feminismo. Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro 2014.
Machado, Carlos Eduardo Dias, (2016). Ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente.
________________Ciência negra: uma proposta para a descolonização do conhecimento, de Carlos Machado, pro site Mundo Negro: http://www.mundonegro.inf.br/portal/2014/02/ciencia-negra-uma-proposta-para-a-descolonizacao-do-conhecimento/
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